talvez um dia eu volte a escutar. eu andava
ressabiado com
o barulho que surgia todas as noites por dentre as frestas da porta
que dava pra o quarto ao lado. quarto habitado por uma mulher que vi uma
ou duas vezes. ela tinha
cabelos tingidos de loiro. um nariz
meio curvo.
anda quase sempre com um
piercing na orelha. morava então na pensão
viva luz próximo ao aeroporto. todos os dias o barulho das aviações
invadiam nosso espaço e faziam com que qualquer um parasse por um instante
para deixar o barulho correr pelo meio material que nos rodeia. uma conversa era
interrompida. uma leitura parava num momento crucial. e o avião passava.
um dia logo após o avião passar comecei a escutar o estranho barulho que vinha
do quarto da mulher de cabelos tingidos do lado. o som lembrava uma
batida
sincopada de jazz. estranha comparação. da primeira vez que ouvi o som
me deixei cair sobre ele e quase flutuar. barulho repetido. e dia após dia foi assim.
passava o avião. o barulho começava. parava meia hora depois. uma dia na escada
esbarrei com a mulher. reparei que ela pouco olhou pra mim.tive a sensação de já conhecê-la
faz tempo. mas não me deixei impressionar por isso. assim seguiram os dias. barulho.
aviões. aviões. barulho. jazz. interrupções de pensamentos. um dia sonhei com
o som. foi como viver outra vida. nessa vida eu matava a mulher que amava.
a mulher que eu amava era a de cabelos tingidos. eu a conhecia desde a infância.
a vira
crescer. virar uma linda mulher. via que ela começava subitamente a envelhecer.
tinha uma doença. ela estava morrendo. ela pediu que eu a matasse.
cumpri com meu papel de amante executor. aí acordei. nenhum avião tinha passado.
pelo menos não que eu tenha percebido. mas o barulho estava lá. a batida havia mudado.
no outro dia cruzei com uma mulher morena saindo do quarto ao lado do meu.
cabelos negros. sem
piercing. o barulho havia mudado. segui minhas noites.
a partir desse dia fiquei surdo.